O impossível do amor

O carro carregado e pesado de presentes e coisas, as mais variadas, que ele levava para o interior com a alegria e a despretensão dos que sabem doar verdadeiramente.

Era homem bom, calmo, manso, sereno. No olhar, a sabedoria de quem sabe; nos passos lentos, a paciência dos que não se revoltam diante do inexplicável da vida. Baixo tom da voz, fala suave, pausada – e o olhar fixo quando se punha a escutar, atento.

Por pura generosidade se autointitulou advogado da causa que começara perdida, vez que não levada a termo, pois o dever alimentício jamais fora regularizado e, temerosa de vê-lo preso, a mãe perdoava o pai da dívida e de tantas outras falhas e fraquezas. Afinal, ao provocar a prisão de um pai, seja por qual motivo, não dilacera-se o filhos?

Gostava de ir à casa da tia para ver e ouvir o Senhor Nelson. Alto, magro, esteticamente nobre. Admirava-o por sua inteligência e distinção.

Ele se punha a explicar os trâmites do processo jurídico que não se findava, convencido de que eu, criança, tinha capacidade de entender. Nessa troca, meu olhar brilhava, o dele também. Que espécie de relação existiu entre nós não sou capaz de dizer. Mas havia algo que, se não se realizou nele, restou concretizada no que veio depois.

Reconheceu na curiosidade da criança a paixão pelas letras e o interesse pelos estudos. Dizia-me ser menina de futuro. Ah se soubesse o que me tornaria mais tarde! Que futuro? O que ainda há de vir.

Sua filha doou-me as primeiras apostilas de vestibular que devorava num quarto da casa de minha avó. Imaginava que lê-las me conduziria a alguma coisa, me daria um norte ou caminho. Nem sei! Talvez o puro prazer de conhecer. Eram sementes plantadas na cabeça da que nutria sonhos de ser grande de uma grandeza que não conseguia medir, definir ou precisar. Apenas ser. Mas o quê?

Quem sabe o futuro avistado por aquele homem?! Juíza, entrevia. E mal poderia imaginar que me tornaria a pior juíza de mim mesma. Dura, rígida, inflexível com os próprios erros. Mais tarde, outro senhor me aconselharia: “Tenha paciência com os outros, porque sei que, consigo própria, não tem.”

A notícia da morte me entristeceu. Não mais a espera, o coração em expectativa. Não mais a escuta de termos que não entendia, e achava bonitos. Não mais a presença mansa, o olhar gentil e os olhos delatores repousados em mim. Não mais a delicadeza do aperto de mão, não mais seu retorno. Não mais ele.

Tempos depois notícias de que seu filho chegaria para vender a fazenda. O alvoroço tomou conta, pois não se tinha ideia de como era em aparência. Eu gostei. Teria visto algo do pai no filho?

Quinze anos era tudo o que eu possuía. De início, não olhou para mim. Quem sabe!? Manifestou interesse numa tia que, por estar comprometida, não lhe deu esperanças.

Voltou-se para mim. “Eu já sabia que eu era inevitável”, diz a mulher. E numa tarde, na calçada da casa de minha avó, pegou papel e caneta na frente dos que ali estavam e escreveu: “Você é como o Sol…”. Já nem me lembro que mais dizia a carta, só o início está gravado para sempre dentro de mim. “Você é como o sol.”

Convidou-me para sair à noite. Fui. Ao final de nosso encontro, quis me deixar à casa para concretizar o que de algum modo antevia: eu o queria antes e tanto mais de ele me querer.

Era o primeiro beijo. O primeiro homem. O primeiro.

No terceiro dia, despediu-se. Fiquei a lhe mandar cartas, a lhe escrever sobre o que não podia ser. Ouvia a voz ao telefone. Ansiava pela sua volta.

E foi assim que comecei a criar em menina as mais falsas ilusões para viver o impossível do amor que continua a ocupar-me toda agora.

Casa e comida

Numa casa tem que ter comida. Não aquela que se pede via aplicativo e chega pronta e embalada. Mas a comida se fazendo, preparada com mãos próprias. O fogo aceso. Alimentos cortados na hora, barulho de panelas, o borbulhar do cozimento, o anúncio da fome intensificado pelo cheiro do tempero a invadir ambiente e vizinhanças.

“O almoço tá pronto?”

“Quase.”

Sentados à mesa, uma conversa e outra, “passa a farinha”, “a salada”, “a pimenta”, o olhar inquisidor do responsável pelo preparo sondando os rostos a fim de constatar se as expressões são de satisfação. Enfim, a pergunta que não cala. “A comida está boa?”

Na pia, louças sujas. Saciedade. Por que não uns minutinhos de cochilo?

Aqui em casa, há tempos, não se via o acender das chamas. O fogão estático, suspenso de sua principal função de cozinhar alimentos, quando muito, só fervia a água do café. “O cafezinho não pode faltar”. Parado, imóvel, quieto, ao olhá-lo era como se fizesse um apelo mudo para que fosse o mais rapidamente utilizado a cumprir seu destino de fogão.

Preguiça? O fato é que não queria me mover à cozinha de jeito nenhum, desculpando-me com o discurso de que não é nada animador cozinhar apenas para mim mesma. Então, me dirigia a um restaurante onde tudo encontra-se ao alcance da vontade de comer, sem que para isso haja minha participação, salvo para colocar a mão na carteira e pagar o preço da comodidade.

Além do mais, a falta de vontade de lavar louças e lidar com demais atividades domésticas me tomou nos meses que se sucederam à mudança de cidade. Nesse período, me autointitulei madame. Faltava-me disposição para as repetidas tarefas de casa. Tratei de colocar longas unhas postiças que dificultava o manuseio de coisas simples, até mesmo de escrever. Um álibi que usei a fim de curtir sossegada a minha baianidade por tanto tempo relegada. Na verdade, só queria me deitar no sofá ou sentar na poltrona e ler meus livros em paz. E que tudo viesse a mim. Estava pronta para receber.

Em Brasília, cozinhava muito. As fotos que chegam no celular dos bonitos e caprichosos pratos não me deixam mentir. Houve um tempo em que os preparava com a maior dedicação e zelo possíveis. E amor!

Gostava de convidar amigos e colegas para jantarem e os acolhia com alegria e mesa farta. “Mas que pessoa prendada!” Se a eu que habita em mim hoje presenciasse tal cena não acreditaria em tamanha proeza. Era movida pelo desejo de agradar aos que se moviam até meu apartamento. E de fazê-los querer voltar. Sentirem-se bem recepcionados e, o mais importante, demonstrar que aquilo era realizado de bom coração e bom grado.

Mas gostava ainda mais de cozinhar para o homem que amava, e amo, afinal, quase como prova de que a demonstração de amor passa pela ânsia e gosto de alimentá-lo, nutri-lo.

No encontro entre pessoas há uma fome que não se sacia, uma falta que não se preenche. Uma anseio que não se completa. Uma interrogação que carece de resposta. É como se o outro se dirigisse a nós com fome de algo tão elementar como o leite e o afeto maternos e por faltar o essencial oferecêssemos o pouco que temos. E o pouco que temos é tudo que podemos. “Eu lhe dou pão, já que não posso dar o que procuras. E o que procuras não tenho nem para dar a mim mesma que também preciso.”

Quando criança adorava ir atrás de comida na casa de minha avó. “Vó, que tem pra comer?”. E ela dizia que só abria a boca para dizer que estava com fome. Mal sabia que era mesmo fome insaciável a que sentia. Então, dava-me salgadinho, bolacha recheada, pipoca doce, refrigerantes e tudo o mais que devorava satisfeita por ter avó dona de venda.

Era ela quem fazia o almoço mais saboroso que provei na vida e do qual jamais esqueci mesmo tendo frequentado restaurantes de pratos elaborados por master chefs. Arroz, feijão, macarrão, carne batida ou cozida e até mesmo a salada de alface e tomate preparados pela vó tinham gosto especial. Beiju, coalhada, abóbora com leite me alimentavam. Seu afeto nutria minha faminta alma de menina. Nada deixou faltar. Se não me saciou por completo, pouco importa. As tentativas foram infindáveis. A memória é rica desses registros que o tempo não dilui.

Agora a chama do fogão reina de novo em minha casa e reacende o sabor da boa comida caseira. O feijão está no fogo. O chiado da panela marca o correr das horas. É noite. Transito entre a cozinha e a sala, entre o cheiro do alho e do papel de um livro novo. Alimento corpo-espírito. Sozinha no apartamento, cozinho apenas para mim. Porque me amo, me nutro. Porque os amo, alimento-os.

Não temos força para amar se nos falta o pão de cada dia. Casa tem que ter comida e amor para que o espírito se fortifique e então se revele.

O que é a vida?

Faz um ano que me distanciei fisicamente de Brasília. Faz um ano que Brasília não sai de minha memória. Cheguei em meio aos festejos de São Pedro; a cidade colorida, lotada, enfeitada. No hotel, sozinha, acordo depois de alguns minutos de sono. Hora do crepúsculo. Eu me pergunto em meio às lágrimas: o que vim fazer aqui? Eu sanciono em meio ao desespero: quero voltar.

Por que a vida não se fez por lá? Por que o amor não se consumou por lá? Por que os sonhos não se realizaram lá? Sou feita de vida, amor e sonhos onde quer que esteja. Eles se fazem é dentro de mim.

Sinto que ganhei algo. Sinto que perdi algo. Sem que ao menos saiba o que perdi e ganhei. Vislumbrei o amor que vi surgir atrás da tela. Olhar penetrante a me puxar como imã. Encurtei a distância.

Vontade de não escrever mais nada. Mergulhar no silêncio. Fugir de tudo, fugir de mim, de minha burrice e sandice. Inaugurar num terreno novo, sem lembranças do que fui e tive, dos amores que não vingaram. Mas nem sei se era amor. O que é amor pelo amor de Deus?

Tive dinheiro, viagens, sucesso, casa, carro, apartamento, casamento, filhos… Tudo o que está inscrito no catálogo do mundo eu tive.

A vida é isso?

É.

Não é nada do que quero. E o que mais quero não passa de vislumbre e miragem.

O que é a vida?

A vida é só isso mesmo.

Quem vê os closes, não vê as quedas

Lembro-me agora de um episódio que me ocorrera quando criança. A casa de minha mãe e a de minha avó localizavam-se na mesma rua, a poucos metros de distância uma da outra, de modo que transitava o dia todo para lá e para cá, andando ou correndo.

Na calçada da casa de minha avó reuníamos toda a família ao fim da tarde para conversar, relembrar casos, dar risada, tomar café, e por que não brigar?

Mas lembro de que no mais das vezes ríamos muito. Ríamos tanto que alguns envergonhados mudavam de rota para não passar frente a nós devido à desconfiança de que poderíamos inclusive rir deles.

Numa dessas tardes, dirigi-me à casa de minha mãe para tomar banho e logo após retornar à da minha avó. Banho tomado, eis que quando tento ultrapassar a calçada meu pé direito esbarra no meio fio e caio indefesa.

Senti que não me ferira, mas meu primeiro pensamento foi de ficar imóvel e inventar a quem viesse ao meu encontro que havia me machucado, apenas para justificar a permanência no chão como quem desmaia.

Todos ririam de mim se não atuasse, se demonstrasse que estava tudo bem e que não havia passado de uma queda boba. Mas como havia fingido algo mais grave vieram ao meu encontro com ar de muita preocupação para me salvar.

Sempre vi pessoas rirem dos tombos dos outros antes mesmo de oferecerem ajuda ou mesmo checarem se haviam se machucado. Eu nunca entendi porque pessoas caindo provocam tantos risos.

Existia um programa de televisão exibido aos domingos que destinava um bom tempo à exposição de vídeos em que pessoas caíam das mais diversas maneiras. A audiência ia a mil, arrancava gargalhadas dos expectadores, alguns chegavam a considerar o ápice do programa, a melhor parte.

Mas de mim, ele não arrancava sorrisos, pois só pensava o quanto elas deveriam se machucar, e isso não poderia ser motivo de alegria para ninguém. Só mais tarde eu própria ri de certas quedas e também das minhas, sem que jamais tenha compreendido por quê.

Era carnaval, primos, amigos e eu estávamos esfuziantes. Andávamos com os braços cheios de pulseiras luminosas e de todas as cores. Seria nosso primeiro carnaval descendo às ruas atrás de um trio elétrico. A própria cidade não suportou o peso da felicidade de seus habitantes e um apagão tomou conta de tudo.

Caminhávamos e dançávamos no breu, iluminados apenas pelas pulseiras, cuja luz não foi suficiente para me deixar entrever um toco de madeira fincado no chão. Meti-lhe a canela e caí longe. Eu e minhas pulseiras que foram parar a metros de distância de mim. É claro que todos riram em meio ao sangue que jorrava.

Levantei-me, a energia elétrica novamente deu luz à cidade e curti a festa durante toda a noite. Só no outro dia senti a dor do ferimento e fui tratá-lo. A cicatriz dessa queda permanece como para lembrar-me que em meio à alegria algo de inusitado pode acontecer e nos marcar para sempre.

Mas não me lembro de ter caído durante os treze anos que morei em Brasília. Em Brasília, não caí uma só vez. Era como aquelas árvores que “envergam, mas não quebram”. De onde tirei tanta firmeza até hoje não sei. Mistério!

Mistério também é eu ter começado a cair novamente ao voltar à Bahia. Na casa de minha mãe levei um tombo na cozinha. Julguei-a culpada, porque o chão já estava brilhando de limpo e ela jogava água pela décima vez. Ela me acusou de volta: “É você quem não deveria andar de pés descalços pela casa.” Não sei quem de fato teve culpa. Só sei que caí.

Recentemente passei alguns dias em Brasília e aproveitei para visitar os familiares em Goiânia. Na casa de minha tia levei um tombo na cozinha molhada e escorregadia. Estava com dois livros, um em cada mão, e não tinha onde me apoiar. Caí como quem mergulha. Rimos da cena depois. Eu me levantei, me arrumei e fui passear pela cidade. Ao ver as fotos do passeio, a tia comentou: “Quem diria que havia caído horas antes.” Eu respondi: “Pois é tia. Quem vê meus closes, não vê minhas quedas.” Gargalhamos muito.

Mas veja, minha passagem por Brasília se deu sem quedas. Em Goiânia, assim que cheguei fui arremessada no chão. Não entendo. Vou parafrasear Clarice Lispector: “Em Brasília, tenho resistência física, enquanto na Bahia e demais lugares sou meio mole, meio doce.” Essa moleza tem sido meu álibi.

Agora mesmo escrevo com o joelho ferido e arranhado de mais uma queda. Começaram as festas juninas aqui pelas bandas do interior da Bahia. E eu que não ia na de ontem, resolvi de última hora comparecer – e com salto alto. Mas o salto nunca foi um problema, eu que dele me utilizo desde os quatorze anos de idade. Só que não fui feliz na escolha do modelo. Minto, fui feliz porque sorri e dancei durante toda a noite, invadida por um estado eufórico de felicidade que não dava sinais de futura tragédia.

Só que ao término da festa resolvi soltar a fivela que mantinha o pé firme na sandália. Despedi-me dos amigos e, sozinha, andava em direção ao carro. Eis que atravessando a rampa de paralelepípedo na saída do local da festa, o calçado vira, perco o equilíbrio do corpo e caio no chão na frente de todos. Parecia Maria Madalena ajoelhada em meio à multidão.

Um homem correu ao meu encontro para prestar auxílio, me estendeu a mão, de modo que consegui me levantar apoiada nele. Ainda consegui ver o espanto nos rostos de algumas pessoas ao meu redor. Mas para minha surpresa não tive vergonha de ter caído.

Perguntei ao mesmo homem que me ajudou a levantar se poderia me conduzir até o carro. Ele estendeu o braço e enquanto caminhávamos me perguntou se teria condições de dirigir. Disse que sim, que caíra por conta da sandália,e não havia bebido. Pensou que poderia estar bêbada. Percebi.

Cheguei à casa, tomei remédio para a dor que ameaçasse vir e dormi profundamente. Só no outro dia lavei e cuidei do ferimento. Deitei-me no sofá assim que acordei, abri um livro em que Clarice Lispector diz: “Eu mesma vivo me levantando e caindo de novo e me levantando.” Coincidência? É e não é. Mas parece que a vida é esse eterno cair e levantar.

Levantei-me e estou aqui pensando no quão gentil foi o homem que me ajudou. Agiu com uma delicadeza que ainda agora me emociona. Disse-me coisas assim: “Isso acontece”, “dos males o menor”, “a senhora tem condições de dirigir?”, “vou ajudá-la a tirar o carro desse lugar apertado para que não corra o risco de bater nos outros que estão em volta”, não acreditando que eu não estivesse bêbada.

Ainda sinto a firmeza com que segurou meu braço e me conduziu para eu não cair de novo… Tudo isso porque na minha fraqueza lhe pedi ajuda e o fiz herói, grande e forte.















Tentativa

Sou escritora do meu tempo. Quero dizer, da época em que vivo. Escritora, humana, sujeita às distrações, aos vícios e às mazelas que podem nos furtar de nós. Entregue aos prazeres do corpo e da alma, às alegrias, à vã promessa de felicidade que, sei!, jamais chegará e cujo saber orienta a busca inalcançável.

Estou nas ruas e nas redes. Facilmente encontrável e abordável. Respondo mensagens que recebo, assim que as recebo. Não faço poses, salvo para fotos. Diante do outro que me solicita sou sua igual.

Sento-me com amigos leitores para tomar café, cerveja, vinho, drinks. Água. Papear. Falar sobre vida, amores, sonhos, medos, pavores. Tenho coragem de estar frente a frente com quem me lê e perscruta os segredos que não conto para mim mesma.

Numa mesa de bar, um leitor me intimou: “Estou esperando você dar a volta por cima.” E ainda fez essa observação: “Às vezes não parece que foi você quem escreveu determinado texto. Eu te conheço de perto, sua alegria, e não me parece que tem a intensa capacidade de sofrimento que expressa naquilo que escreve.” E fez a pergunta: “Não acha que cultiva certo drama apenas para escrever? Um certo charme, um jogo de escritora…”

Acontece que eu não seria dramática na arte se também não o fosse na vida. Concordo, quase sempre estou muito alegre, o que também não impede que por dentro esteja vivendo meus dramas. Sou muito verdadeira enquanto escrevo e se o texto se apresenta com determinada carga de sofrimento é porque naquele instante da escrita, rápido, fugaz, instantâneo, mas autêntico, estava de fato mergulhada naquele estado de espírito.

A exemplo, quando escrevi “Dilúvio”, publicado no livro “Eu passarinho!”, parecia que as lágrimas não secariam jamais. Nas primeiras aulas de Psicanálise fui descobrindo coisas que estavam inconscientes e que emergiram sem eu ter me preparado para tanto. De repente me veio uma enorme sensação de desamparo que abriram todas as comportas de águas existentes e inexistentes dentro de meu ser. Meu Deus!, pensei, que farei de mim? Então escrevi sobre o que me invadiu naquele momento.

Horas depois já estava caminhando pelas ruas, sentindo o ar no rosto e pensando o quanto a vida é mágica e maravilhosa. Horas depois cantava e dançava pela casa sorrindo para as paredes. Horas depois havia colocado a roupa mais bonita, salto alto e batom vermelho e saía para um delicioso e alegre jantar.

Quem me visse diria que eu não havia sofrido minutos antes. Mas eu havia. É Clarice Lispector quem diz: “Quem é capaz de sofrer intensamente, também é capaz de intensa alegria.” Sou capaz de experimentar o céu e o inferno sem perder o brilho nos olhos.

Dizem que o drama é característico do signo de leão. Sou leonina. Dramática, excessivamente vaidosa, ferozmente orgulhosa. Apesar de que descobri recentemente: não sou uma coisa nem outra.

É que nasci em 22 de julho, cúspide de câncer e leão. Parece que posso ser as duas coisas ou nenhuma delas. Tudo ou nada. Vi uma explicação assim para definir o que é essa tal de cúspide: imagina uma pizza cortada em pedaços. Quem nasce na cúspide não é nem um pedaço nem outro, está ali no corte entre um e outro.”

Estou no abismo. Sou abismal. E nem posso dizer que a culpa é do meu signo, porque não sei qual deles.

Para esse leitor que quis saber quando darei a volta por cima, sem que eu saiba exatamente o que isso significa: Bem, não sei.

Escrevo, escrevo e escrevo. E se isso não é dar a volta por cima, que pelo menos seja visto como uma fracassada tentativa.

Mulher versus mulheres

Ainda não podemos afirmar que tipo de vida uma mulher deve ter para ser minimamente compreendida e aceita. Mas tenho certeza de que, no momento em que ela diz não para namoro, casamento e, sobretudo, maternidade, ela não é de modo algum aceita. E ouso dizer: principalmente pelas outras mulheres. E digo mais: principalmente pelas mulheres cujas vidas giram em torno de um homem e dos filhos.

A maioria delas jamais compreenderá alguém que tenha outros sonhos e que se sente alegre e feliz abrindo mão de tudo aquilo que para elas constituem a própria vida. Quem nunca ouviu uma mãe dizer: Meu filho é minha vida? Quando ouço tal afirmação só me vem à cabeça esse questionamento:

E quem elas eram antes do filho? Nada?

Pois bem, meus pensamentos nunca orbitaram em torno de casamento e maternidade. Criança, adolescente, adulta, em nenhuma dessas etapas persegui tais destinos. Pensava que se conhecesse uma pessoa que me despertasse para o compartilhamento de uma vida isso ocorreria naturalmente. Juntaríamos nossas coisas, habitaríamos o mesmo espaço e dividiríamos bons e maus momentos.

Quanto à maternidade, nunca senti desejo de ser mãe, o que por si só basta para que não seja. Além do mais, a espécie de maternidade a qual imagino que gostaria de exercer não seria possível diante da vida que levo. A atenção, o cuidado e a educação que gostaria de oferecer a um filho seriam impraticáveis, salvo se não trabalhasse ou caso tivesse jornada de trabalho reduzida pela metade. Não gostaria de terceirizar essa função a desconhecidos nem que meu filho fosse criado pela avó. Jamais porque a avó não seja a pessoa indicada, mas para não lhe impor responsabilidade que seria minha.

Também a liberdade que gosto de usufruir seria fatalmente prejudicada. Um filho costuma ocupar demais a cabeça de uma mãe, de modo que muitas vezes ela não consegue estar onde realmente está. E preciso estar em mim na maior parte do tempo.

E mais, em determinadas situações acho tão difícil carregar o peso de nossas próprias preocupações e angústias que não consigo me imaginar tendo de lidar com as frustrações e as dores de um filho que eu amaria tanto e faria de tudo para poupá-lo.

Definitivamente, a função materna não é para mim. E nada tenho contra. Pelo contrário, admiro quem renuncia tanto de si em prol do outro. Ser mãe é sacerdócio, é sacrifício. Pode ser de uma nobreza incomparável, mas satisfaço-me em me dedicar a outras coisas que talvez não sejam tão nobres, no entanto me dignificam e me realizam.

Ocorre que uma mulher pode gozar uma vida fenomenal, trilhar uma brilhante carreira, possuir um talento incomum, dedicar-se a atividades que animam seu espírito, desenvolver um intelecto admirável, ter imensa capacidade de amar outros amores, se deliciar com as próprias escolhas, contemplar interiormente o seu percurso e pensar “quão magnificamente vivo!”, mas se ela não tiver um homem ao seu lado e filhos que a qualifiquem e a legitimem parece que tudo o mais não é o bastante para se afirmar mulher.

Precisamos acabar de uma vez por todas com a ideia de que a mulher não pode optar por outros caminhos, inclusive ficar sozinha. Afinal, “a solidão é um luxo”, diz Clarice Lispector. A solidão não é nada ruim para quem tem a si mesmo em verdade, gosto e profundidade.

O mundo é dotado de enorme diversidade, mas a mentalidade humana pode ser de uma pobreza sem igual, quer se firmar nos mesmos e conhecidos caminhos. E o que é pior, quer fazer os outros acreditarem que as próprias escolhas são as mais acertadas e por isso devem ser seguidas.

Por que a necessidade de convencer os demais a seguir o destino que seguimos? Porque quando isso ocorre, valorizamos mais a nós mesmos. Se o outro faz o que eu faço, confio mais em mim, confirmo que estou certo e me reafirmo perante a minha própria pessoa. Puro sentimento egóico de autoafirmação. Ernest Becker diz nesse sentido: “Ver os outros como iguais a nós é acreditar em nós mesmos.”

A vida comporta muito mais. A mulher pode ser livre para viver de acordo com o próprio desejo e vontade desde que tenha coragem de dizer não a tudo que lhe querem impor. Não é fácil nadar contra a correnteza, mas como cantou Cazuza, serve para exercitar os músculos. “Pro dia nascer feliz” é preciso ter pulso para bancar o que se quer, olhar-se no espelho e dizer: “Essa é a vida que eu quis”.

No conto “Trecho”, de Clarice Lispector, Cristiano avisa a Flora que a vinda dele até ela constituirá o grande fato de suas vidas. Ela dirige-se a um bar e fica horas e horas esperando por ele. Quando o garçom lhe pergunta se quer um refresco, responde: “Eu não quero refresco, eu quero Cristiano.” Enquanto o aguarda pensa e repensa a própria vida. Tem uma filha. Acabará abandonada como tantas outras mulheres com seus filhos?

Quando criança, Flora brincava de tudo, até de soldado. Um professor de francês lhe disse que ela poderia ser poeta. A mãe sentenciou que Flora prenderia quem bem quisesse. Ela sabia fazer muitas coisas e muito bem feitas. No entanto, estava ali parada lembrando-se da filha que deixara em casa e à espera do amante.

Flora relembra um episódio em que avista uma mosca rondar uma xícara de chá: “porque é que possuindo um belo par de asas não voam mais alto? Serão impotentes essas asas ou sem ideal as moscas?”

Por que as mulheres não voam mais alto? Impotência ou falta de ideal?

Ela sabe que poderia muito mais do que ficar à espera de um homem. Diz estar pronta para a vida, diz ser superior porque sabe que existe. Tem dimensão do quanto tem condições de voar alto, mas está ali desolada num bar enquanto o homem não chega.

Ela se diminui ao tamanho da filha a que chama Nenê. Diz-se pequena, reduz-se para caber apenas nos braços de Cristiano.

E ao pensar no quanto seu destino poderia ser diferente, ela se resigna: “É que em vez de gritar, de reclamar, só tenho vontade de chorar bem baixinho e ficar quieta, calada.”

Cristiano chega e Flora já não pensa em mais nada.

O casamento pode ser um caminho. A maternidade outro. Mas não são os únicos. Existe outras maneiras de se realizar. Uma mulher pode perfeitamente dizer não a tudo aquilo que a maioria espera dela, mas precisa dizer sim ao que ela espera dela mesma.

O preço a ser pago por ceder às pressões dos outros pode ser muito alto e até impagável. Se tivermos que bancar algo que seja em virtude de nosso mais genuíno querer e não proveniente da vontade alheia.

Se tiver que comer uma fruta proibida que seja a escolhida por si mesma, e não a oferecida pelas outras Evas, afinal de contas elas só nos dão maçã. E há muitas frutas mais saborosas e suculentas por aí. A maçã é só uma entre tantas. E quer saber? É a fruta de que menos gosto.

Vida fitness

Escrevo por liberdade e só na hora em que tenho vontade. Há pessoas que dizem que gostaria de viver do produto de sua arte, ganhar dinheiro suficiente por meio dela para não ter de fazer outra coisa. Eu não. Caso tivesse de escrever por motivo de subsistência me sentiria compelida a criar alguma coisa quando meus recursos dessem mostras de minguar. E tudo que não desejo é ser obrigada. Pelo contrário, agradeço o fato de minha sobrevivência vir de outra fonte e assim escrever só nos momentos do meu exclusivo querer.

Também não escrevo por encomenda, salvo raríssimas exceções. De vez em quando uma pessoa ou outra me diz “escreva sobre isso” e, se é uma pessoa da minha estima, eu acabo escrevendo. Eu gosto de servir aos que gosto com prazer.

Certa vez um amigo de infância me pediu para escrever sobre o choque elétrico de uma porquinha. Escrevi. Agora fui instada a escrever sobre um tema que está em voga: vida fitness.

Ao me encontrar com um colega de trabalho num restaurante, ele deu queixas de dores no corpo em virtude de ter iniciado aulas de ginástica e musculação. Minha resposta: “Estou abusada de academia. Vou um dia e falto nove.” Ele propôs: “Escreve sobre isso.” Olha eu, mais uma vez, obedecendo.

Acontece que já tive por quase quatro anos uma vida alimentar e de atividade física absolutamente regradas e cronometradas. Chegava a frequentar a academia duas vezes ao dia, a qualquer hora, aos finais de semana e feriados. Eliminei da dieta o açúcar, os produtos industrializados e todas aquelas guloseimas que nos dão um prazer quase orgástico quando adentram nossa boca. Emagreci, ganhei músculos, a barriga diminuiu bastante, embora nunca tenha zerado. Tive uma vida fitness que foi eterna enquanto durou, mas agora estou noutra “vibe”, como dizem por aí.

Confesso que me cansei do ambiente de academia e cansei ainda mais dos movimentos repetidos. Odeio a repetição. Cheguei a me questionar em alguns momentos em que descia até o chão com as pernas arreganhadas e a barra de ferro nos ombros: “Oh my god, o que estou fazendo aqui?” Quer saber? Desisto. A desistência, como diz Clarice Lispector, é uma espécie de revelação. Então, revelo-me.

Quanto ao aspecto da nutrição, sem muitos dilemas. Não tenho nenhuma tara por comida e prefiro alimentos salgados a doces. Não sou maluca por chocolate ou sobremesas em geral. Acho chique comer pouco e adoro o arroz com feijão de todo dia. Apenas o cafezinho precisa conter açúcar, porque acho mais gostoso e me dou o direito a esse luxo. Eu mereço.

A desistência a uma “vida fitness” pode durar pouco, como pode durar o resto dos meus dias. Mas sou vaidosa por natureza. Tenho meus cuidados para não sair totalmente do prumo.

Lembro-me da cantora Marília Mendonça que, num vídeo gravado dentro do avião, poucas horas antes da queda que veio culminar em sua morte, comia uma maçã e outros alimentos integrais, e lamentava-se chegar a Minas Gerais e não poder se deliciar com as saborosas comidas típicas da região, uma vez que precisava seguir o script da dieta.

Bem, se passasse pela cabeça que aquela seria sua última refeição teria escolhido comer o quê? Não saberemos. Mas creio que não comeria uma maçã.

Em hipótese alguma faço apologia aos excessos ou para que as pessoas liguem o “foda-se” e não façam dietas ou exercícios físicos. Longe de mim. É importante se cuidar. Mas também é importante se dar folga e descanso de certas coisas. Eu estou me dando um tempo para ficar de pernas para o ar. Quanto tempo? Não sei.

Só que não vou mentir. Ando meio preguiçosa e até quis me justificar pelo lugar onde moro atualmente: “Ah mãe, depois que cheguei na Bahia tô meio assim molenga”. Minha mãe, que nada deixa passar: “Você já estava assim em Brasília.”

Quer saber? É isso mesmo. Estou é com preguiça. Cheia de manhas e artimanhas, como me disse um amigo. Não vou ficar justificando o injustificável. Vou é resolver esse blá blá blá com uma frase da minha amiga Clarice, que me entende muito bem:

“De agora em diante eu gostaria de me defender assim: é porque eu quero. E que isso baste.”

Cansei de vida fitness. Quero vida sem adjetivações.

Mulher gostosa

Quando alguém me dizia que sou bonita ou linda meu primeiro impulso sempre fora no sentido de sutilmente discordar: Ah, são seus olhos! – dizia sorrindo.

É que nunca me achei bonita ou linda. E não! Não tenho nenhum problema de baixa autoestima. Gosto de mim. Jamais quis alterar algo que vem de mim para mim ao contemplar o espelho. Na verdade, tenho a impressão de que só poderia ser fisicamente como sou. Nada deveria ser diferente.

Digo com muita sinceridade, se me fosse dada a chance de mudar algum aspecto físico não mudaria absolutamente nada. É como se o exterior apenas refletisse meu interior.

O que mudou é que agora já não recuso mais os elogios, pois aprendi que não devemos negar a alguém o direito de nos admirar, mesmo que não concordemos, pois agir dessa forma é como podar a alegria do outro de nos oferecer algo. É privá-lo da satisfação de se sentir bom e generoso por doar, ainda que seja elogio.

Diante de alguém que diz que sou bonita ou linda, agora respondo: Obrigada! Recebo e agradeço. Retribuo com um sorriso. E só.

Mas se não me acho bonita, tampouco me acho feia. O que sou? Sou.

O psicanalista Ivan Capelatto deixa muito claro que a autoestima está relacionada ao sentimento ético que nutrimos por nós mesmos e não ao sentimento estético. Algo no sentido da potência que vem da forma natural de ser.

“Quem tem autoestima não tem orelha grande, cabelo feio, nariz grande, celulite, seio pequeno. Tem vida. E tem a vida do outro. Cuida de si e cuida do outro”, acrescenta Capelatto, que também diz:

“O belo é eu suportar minha feiura.” Suportar o que é naturalmente nosso.

Imagina o quanto deve ser difícil para alguém achar que seu valor está na estética corporal e vê-la se definhar pelos quilos a menos ou alterar pelos quilos a mais ou pela própria velhice contra a qual não podemos lutar sem que pareçamos um pouco ridículos e antinaturais.

Dei para dizer que imagino ter “uma coisa”, algo que pode atrair, chamar a atenção, interessar. Essa coisa não tem nome. Ela fica no ar, no invisível. Essa coisa não tem corpo, está além do corpo e a ele sobrevive. Tanto é que no livro “O amante”, Marguerite Duras narra um episódio em que um homem se sente seduzido por ela, e lhe diz achá-la mais atraente na velhice do que na mocidade:

“Eu a conheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quando era jovem, eu vim para lhe dizer que, para mim, é mais bonita agora do que quando era jovem, eu gostava menos de seu rosto de moça do que esse que você tem agora, devastado.”

O cirurgião plástico Ivo Pitanguy afirma que há muito mais coisas numa mulher que podem chamar a atenção. Não nega que a beleza atrai, mas ela não sustenta a si própria. Ele, que passou a vida a tentar tornar as pessoas mais belas dentro do conceito que elas mesmas tinham de beleza, declarou com aquele olhar de quem enxerga além do que se vê:

“O poder não tem corpo”.

No conto “Obsessão”, de Clarice Lispector, a personagem Cristina abandona o marido e os pais ao ficar hipnotizada por Daniel. Seu fascínio por ele é expresso nessas falas:

“Do primeiro Daniel nada guardei, senão a marca.”

“É que ele me dominava de tal forma que, se assim posso dizer, quase me impedia de vê-lo.”

“Eu assim apenas possuía suas palavras, a lembrança de sua alma, tudo o que não era humano em Daniel.”

Cristina não conseguia sequer rememorar o rosto daquele por quem teve a coragem de abandonar tudo. Após deixá-lo e narrar a história entre os dois mal conseguia se lembrar dos traços físicos de quem tanto lhe encantou.

Um amigo, que me confessou ficar ansioso sempre que marcamos de nos encontrar, uma vez que adora conversar comigo por horas, diz: “Corpinho e rostinho bonitinhos tem aos montes por aí, mas alguém com quem vale a pena eu sair de casa e me dispor a bater um papo é muito raro.”

Num diálogo com um homem que disse ter gostado de mim, pelo motivo de eu ser “sedutora”, termo que usou para não se utilizar de outro, “gostosa”, confessado depois, questionei-lhe o que uma mulher tem que ter para que ele considere “gostosa”. A resposta não teve nada a ver com silhueta, curvas ou músculos. Ele disse:

“O jeito de ser e de fazer”.

Dizemos que uma comida é gostosa, pegamos a comida, levamos à boca, provamos, degustamos algo físico, material, com sabor.

E a mulher “gostosa”, para ele, é aquela que seduz pelo jeito de ser e de fazer. Onde está o corpo? Ele desaparece por completo.

O médico Ivo Pitanguy era um homem sensível, inteligente e experiente. Passou a vida realizando cirurgias plásticas em mulheres que super dimensionavam o físico. E ele deu um recado que, de certo modo, contraria um resultado que porventura algumas mulheres poderiam esperar de seu trabalho, o de que elas tivessem os seus poderes aumentados por um silicone ou pela retirada das gordurinhas.

Portanto, fundamental mesmo é que todos saibam que “o poder não tem corpo” e “mulher gostosa” é aquela que é.

Ah, os Homens!

Não sei que tipo de fascínio uma mulher que escreve, e escreve bem, exerce sobre o imaginário dos homens. Temo que alguns leitores estejam confundindo o autor (que sou eu) com a obra (que é também minha) e comecem a atribuir a mim qualidades e defeitos de meus textos como se fossem características de minha própria pessoa.

Não nego possuir qualidades e defeitos. Estes, então, tenho aos montes. Mas não quero ser confundida por uma questão de respeito.

Quando escrevo estou me revelando, mas não se enganem de supor que eu esteja me desnudando totalmente. Eu só mostro é a pontinha do calcanhar como uma mulher da belle époque, pois minha intimidade é guardada a setenta e sete chaves.

Um de meus leitores me mandou e-mail dizendo-me que quer me conhecer pessoalmente porque tenho um jeito de escrever que insinua e provoca e, portanto, imagina que eu seja tão insinuante e provocativa quanto o que escrevo. Ainda acrescentou: “Quando você põe uma vírgula sigo sem respirar e quando você põe um ponto final fico à espera… “

À espera de que, meu Deus?

Como fico diante de uma revelação dessa? Como dizer a ele para não esperar nada de mim? Como afastá-lo de suas ilusões sem parecer deselegante e sem distanciá-lo?

Olha leitor, não pense você que escrevo com ares de sedução como bem insinua. Se a intenção fosse mesmo provocar, eu escreveria com as pernas que abrem e não com as mãos que batem. Peço que não confunda as coisas e nem seja metonímico a ponto de se embaraçar sobre quem de fato sou. E, por favor, esquive-se de me fazer acreditar que sou as palavras que digo. Elas dizem muito pouco. Se eu começar a ser reduzida a elas, sou capaz de parar de escrever.

Em outro e-mail, um leitor disse-me: “Ana você deixa um clima de suspensão no ar e eu fico doido pelo seu final, sua conclusão, seu clímax.”

Sinto muito lhe dizer, querido leitor, mas se você tem ficado doido para que eu me conclua, provavelmente vai parar num hospício. Só tenho controle é no momento do começo. À medida que vou indo, entrando por becos e labirintos, a última coisa que vislumbro é chegar ao fim. Mas, desista de mim não.  Vamos percorrer caminhos desconhecidos. Eu te levarei a lugares que nem sei. “Perder-se também é caminho”, como diz uma amiga. Que tal se perder comigo?

Com relação a uma mensagem que recebi de outro leitor, fiquei realmente em dúvida se era convite, cantada ou espécie de devaneio.

Ele comenta que quando conheceu os meus textos começou a ler, um por um, até que chegou na resenha sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, e ficou hipnotizado.

Então, me mandou isso: “Quando virá a São Paulo? Que tal a gente tomar uns drinks enquanto você lê Machado de Assis?”

Vai ver que ele está me confundindo com a própria Capitu.

Caro leitor, o que tenho a lhe dizer daria para um capítulo, mas não vou me delongar. Talvez a única coisa em comum que tenho com Capitolina sejam “seus olhos de ressaca”. Quanto ao mais, não vejo semelhanças.

Como ela foi capaz de se ligar a um homem como Bentinho que só nos legou as impressões equivocadas e cegas que tivera dela? Eu é que não admito definições. Não me reduza à imagem que tem da Capitu. Tome seus drinks sozinho, pois sou matéria para mais de um volume literário e você deve ser como os Bentinhos da vida que são incapazes de perceber isso e acham que um “drink” resolve tudo.

Tenho um leitor que costumava comentar meus textos e, de repente, sumiu. Dessa vez, eu é que fui até ele: “Você parou de me ler?”

“Você é muito complexa.”

Eu disse: “Sou tão simples quanto a comida que se põe à mesa.”

Ele: “A mesa do Pobre Juan? Do Oliver? Do Gero? Do Taypá?” E começou a elencar os restaurantes mais caros e sofisticados de Brasília.

Acho que entendi o que ele quis dizer.

Não se engane, leitor. Eu sou para a mesa de todos esses restaurantes sim, mas também para o “Fogão à lenha”, “Arroz, feijão e bife”, “Marmitinha do Zé”, “Comidinha Caseira”.

Amados leitores, eu sou e escrevo simples, nu e cru. Vocês é que estão complicando as coisas.